Hoje eu quis sumir daqui.
Você nem sabe onde diabos seja
“aqui” e é tão assim: tão impreciso. E é tão assim que eu te sinto: tão
incerto. Eu sinto muito. É como se, de um para dois, não pudesse esperar nada.
Como se, mesmo voltando à rotina-da-vida-real, algo ressoasse que não, que não
adianta fingir, há algo aqui, bem aqui, está vendo? Há um furacão abafado, há
urgência.
A vida é solúvel.
Me dá a tua mão, menino, eu quis
falar. Foi quase uma prece. Vamos ver tinta azul, eu quis falar. Pintar algo
comum em algo incomum, minhas mãos, teu toque, você decidiria. Não tenha
receio, não. A gente foi como deu, sem saber quem deu a mão para quem, numa
fusão esquizofrênica de calor com frio, tocados adentro pela Nina Simone em
preto-e-branco que virava cor passo a passo, como filme mudo.
Segurando tua mão, decorei como
eram as pontas dos dedos calejados pelos instrumentos de corda e perdi parte de
mim, sem saber se valeria, sem saber se deveria, sem saber [ser quem podia
enquanto podia]. Estávamos presos naquele quarto por um cartão de acesso à
porta e por um ou dois silêncios. Em algum lugar no passado, ainda estamos
naquele quarto, no instante fixo. Talvez agora você não exista aqui além
daquele instante ou do que imagino, pois a vida é solúvel. Você não está aqui,
nunca esteve, não sabe nem onde diabos é aqui. E como posso exigir que um dia
saiba onde é exatamente aqui? Se me prometeu não prometendo, se me disse que
não tem controle algum sobre a tua vida e eu sou obrigada a me contentar com
essa maldita fantasia fantasma. Que essa fantasia de que a vida pode voltar a
ser real como já foi outrora e. afinal, se saiu de mim, sou eu.
Sou eu.
E não me esqueço, pois é isso o
que faz com que eu seja eu mesma. Sou eu. E mesmo que eu continue me
lembrando sozinha de tudo isso, mesmo você se esqueça dos detalhes, do maldito
quadro na parede amarela, do copo que não usei, da tomada que faltava do lado
da cama, mesmo que tudo se torne para ti nem a metade do furacão que é para
mim, mesmo que tudo se desfaça em mil partes e se esqueça da minha vulnerabilidade
ao atravessar a rua... ainda assim eu queria saber se me olhou no instante que
atravessei a rua pensando que seria despedida definitiva.
Queria tanto saber se, no
instante que me virei e fui embora sem olhar para trás, você permaneceu por um
tempo olhando meus passos, se permaneceu lá imóvel, naquela rua, em frente
aquelas escadas com ladrilhos coloridos escritos e desenhados que as pessoas
interditaram para que não subíssemos, queria saber se olhou a sombra dos galhos
de outono na calçada enquanto eu fui embora para o lado oposto. Saber se, caso
não fosse minhas últimas horas naquela cidade, voltaria correndo me ver como se
fosse a coisa mais certa a se fazer. Saber se alguma palavra mudaria tudo como
mudou naquele instante, alguma palavra que faria você largar tudo e ir correndo
me ver mais uma vez. Queria tanto saber se...
(...)
Hoje eu queria sumir daqui, pois
estou presa nesses instantes fixos e nas possibilidades dos acontecimentos,
presa em cada coisa pequena e ingênua porque, agora, essas coisas são tudo o
que temos. Alias, são tudo o que eu tenho. E enquanto tudo isso ainda
existir, cada instante será uma nova razão para escrever. Aqui. Assim. Mesmo
que impreciso ou torto, sendo como sou enquanto posso: é que, em cada
instante, foi como se eu te amasse em cada segundo do tempo. Hoje esse furacão
grita e é um espasmo de lucidez. Eu quis te falar no dia seguinte, mas não
conseguia organizar os pensamentos de uma forma menos barata, redundante e
cafona. Ainda não consigo. Isso foi o mais próximo que eu soube. E eu sei que
você sabe, que sabia, que sempre soube, e apesar disso ou de qualquer outra
coisa, agora sim você pode dizer que me
sabe.
Agora você me sabe
Sabe que eu sempre amei o que
você era e não o que me mostrava.
11/04/2016 às 23:17